Além de escritor, sou ator e, acreditem, biólogo! Sim, entrei no curso de biologia da Unicamp em 1985 e, de lá para cá, embora a biologia tenha feito parte da minha vida de inúmeras maneiras, tenho me dedicado mais ao teatro e à escrita.
Atualmente voltei a estudar biologia, agora focado na escrita de um romance que pretendo lançar. Mergulhado nestes estudos, buscando novos e surpreendentes livros sobre biologia, e recuperando escritos anteriores, voltei a me apaixonar por essa ciência.
E encontrei um texto meu de 2015, que ficou em segundo lugar no Prêmio SESC de crônicas Rubem Braga. Um texto de dez anos atrás, trinta anos depois de minha entrada na biologia, e que, ainda hoje, revela bastante de minha visão sobre o tema.
Espero que gostem.
bio.grafia
1
De tocaia, sobre o fio de eletricidade, o sabiá aguardava um momento de distração e, rápido como um raio, mergulhava em direção à bacia cheia de ração. Pegava sua parte com o bico e voltava para o fio, a observar a movimentação do cão.
O cão, por sua vez, deitava-se displicente a aguardar o momento de distração da ave. Seria apenas uma única vez, e nunca mais. Talvez, por isso mesmo, aguardasse sem pressa o exato momento, como um jogador que pouco se importa em perder algumas partidas, de olho no resultado final.
E eu observava diariamente a luta pela comida, entre o cão e a ave, da minha cozinha. Ali também o cachorro fazia as vezes de sabiá, e eu, de cão preguiçoso, vendo-o roubar restos do lixo.
Com o tempo, o sabiá percebeu que o melhor estava na cozinha, e assim passaram a ser dois a me furtar, ou melhor, dois a trabalhar em cooperação: enquanto eu me ocupava de um, o outro aproveitava e me furtava; enquanto eu espantava o outro, o um já estava longe com seu prêmio.
E o tempo foi passando, o cachorro engordando e o sabiá cada dia mais alegre e cantante. Eles não mais se preocupavam um com o outro, e nem mesmo comigo. E assim os dias corriam lentos e preguiçosos.
Até que surgiu um gato.
Um gato é coisa bem diversa de uma ave ou de um cão, mais ainda de um ser como eu. Um gato é capaz de comer a ração, o sabiá e a minha comida, sem ajudar e sem ajuda.
E foi exatamente o que ele fez.
2
Eu resolvi estudar Biologia porque me encantava a vida. Não havia nenhum outro motivo além desse, óbvio e até ingênuo: gosto da vida (bio), logo estudo a vida (logia). Mas a vida na faculdade não era exatamente como eu imaginara que seria, cheia de vida! Havia a morte também e com ela, seu estudo.
Fiz aulas de taxidermia, a arte de conservar o corpo sem vida; fiz aulas de anatomia comparada onde, em meio ao cheiro de éter, confrontávamos animais mortos com seres humanos mortos; e fiz também experiências macabras, ou melhor, científicas. Mas nada poderia ser tão terrível como a aula de fisiologia animal.
Para cada turma, de seus 30 alunos, um cachorro servia de instrumento para estudarmos os mistérios da vida. O professor narrava o funcionamento do corpo do cão, deixando clara a correspondência entre aquela vida e a nossa:
- O sangue corre nas veias, em direção ao coração, que o bombeia rumo aos tecidos; substâncias produzidas pelo corpo regulam esse funcionamento, controlando a pressão arterial. A adrenalina, despejada na circulação sanguínea, em algum momento de perigo, aumenta a tensão arterial, acelera os batimentos cardíacos e prepara o corpo para a fuga.
Mas ali, naquele laboratório, o cachorro em perigo não tinha o menor controle sobre seu corpo. Nós o controlávamos, sob a coordenação de professores. Sedado sobre a maca de metal inox, o cão arfava, levando para seu pulmão o ar viciado de um laboratório pleno de curiosidade, medo e terror.
Injetada a adrenalina na corrente do cachorro, ela corria também pelo meu corpo - minhas pupilas dilatadas enxergando para além daquela agonia, meu estômago embrulhado, minha pele pálida - acompanhando o derradeiro momento.
- O coração, exaurido pelo esforço, finalmente vai à falência!
Na maca, um corpo inerte, sem vida. Em meus olhos, uma vida inerte, sem corpo.
Na expressão dos jovens, lia-se o futuro de cada um deles: obstinação, surpresa, inquietação, piedade, desconfiança, dúvida. Palavras que com certeza podem construir um cientista. No meu caso, a única palavra que poderia me definir, ali naquele momento, era contradição. Palavra que acredito também definir a ciência, mas que me levou para a arte.
Observando aquela marionete viva, nas mãos da ciência, meus pensamentos vagavam por outro universo. Meus colegas aprendiam sobre fisiologia animal. E eu sobre quem era e quem gostaria de ser.
3
Enquanto eu escrevia este texto, uma fila de formigas caminhava pela mesa em direção ao computador, entrando por entre as teclas, em busca de alimento. Ou talvez fossem minúsculas formigas-correição, como eu, buscando palavras.
Estas formigas são conhecidas por caminharem em grandes grupos por longas distâncias, às vezes sob o solo da mata, atrás de insetos, artrópodes e pequenos vertebrados. Os moradores do interior do Brasil, que as chamam de Taocas, não se importam com a passagem delas por suas casas já que realizam uma verdadeira, e ecológica, desinfestação.
Assim, também eu permitia às pequenas Taocas que me ajudassem a criar o texto que se ia construindo dali para frente. Quem sabe se estes pequenos seres, ao entrarem em meio às letras, me permitissem encontrar as palavras certas. Talvez fossem apenas correições, editando meu pensamento, construindo outro sentido para esta crônica.
Em todo caso já não era mais possível saber se era eu quem escrevia sobre as formigas, ou se eram elas que escreviam sobre mim.
Em outras palavras, nós escrevíamos por meio de um autor ou, se preferir, o autor falava por meio de formigas.
Buscávamos não apenas as letras e palavras certas, mas acima de tudo entender o porquê do texto. Caminhando subterraneamente descobríamos que o sentido aparente exposto no papel não era o mesmo que se escondia por baixo dele. Era como se para cada frase escrita houvesse apenas uma palavra, às vezes até mesmo uma letra, que concentrasse todo o significado.
Mais que escolhas de palavras a serem digitadas, importavam as palavras a serem apagadas. Eram os espaços e vazios entre as palavras que pareciam significar, como se fosse necessário encontrar um caminho em meio a elas para finalmente poder escrevê-las.
E assim, entre vazios e dúvidas, entre espaços e incertezas, palavra por palavra foi sendo apagada, até que soçobrou todo o texto.
Assim como entraram, as formigas saíram do teclado, atravessando a mesa em direção à janela.
Talvez buscassem, como eu, outras palavras.